Vindima 2024
Vindima 2024
Palheto ou Clarete 2024, ainda a estagiar na Talha.
Palheto ou Clarete 2024, ainda a estagiar na Talha.

Como se faz o Vinho de Talha


A vinificação em potes de barro

Há três condições, necessárias e suficientes, para fazer vinho. Quando o homem do século XXI dá voltas à cabeça para identificar essas três condições, desiste ao fim de muito reflectir, não conseguindo identificar mais do que uma, ou duas, dessas condições. A primeira condição é óbvia e toda a gente a identifica, as uvas, apesar de haver mentes maliciosas que afirmam que é possível fazer vinho sem uvas. A segunda condição já não é tão perceptível, pois o homem do século XXI dificilmente se lembrará que é necessário um recipiente, um dispositivo que não existe na Natureza e que tem de ser feito pelo homem. Só com a invenção da olaria foi possível fazer vasilhas de barro e, portanto, fazer vinho. Daí que se diga que a olaria foi a primeira indústria e a vinificação a segunda. A terceira condição ainda é mais difícil de imaginar, mas é essencial para que se faça vinho: a inteligência humana! Antes de haver homens inteligentes, a Natureza já fazia vinho, mas acabava invariavelmente em vinagre. Lembremo-nos do que acontece quando uma trovoada com granizo atinge uma vinha com uvas maduras. Os bagos são parcialmente destruídos e o sumo de uva fica ao dispor dos micróbios que andam no ar ou no aparelho bucal dos insetos que os visitam permitindo que haja a fermentação. Porém, depois da transformação do sumo de uva em vinho, nos próprios bagos, o processo não pára e logo começam a trabalhar as bactérias acéticas para produzir vinagre! Só quando a inteligência humana surgiu, foi possível impedir que o vinho acabado de fermentar passasse a vinagre.

Os arqueólogos admitem que a olaria tenha começado há cerca de dez mil anos, pelo que o vinho feito em potes de barro terá surgido pouco depois. É, por isso, uma indústria multimilenar, cujos segredos estão desvendados há muito tempo. Tudo terá começado na Transcaucásia, isto é, na Geórgia, Arménia e Azerbaijão actuais, há cerca de oito mil anos. Esta maravilhosa tecnologia migrou para ocidente, desde então, chegando à Península Ibérica cerca de cinco mil anos mais tarde, trazida pelos fenícios. Porém, terão sido os romanos, cerca de cinco séculos mais tarde, que vulgarizaram a vinificação em potes de barro no território que hoje é Portugal.

Há a ideia que a técnica de vinificação em potes, conhecida por "processo romano", se limitou ao território que hoje é o Alentejo, mas à medida que a investigação arqueológica avança começa-se a perceber que os romanos fizeram vinho em potes de barro por todo o território da Lusitânia e da Galécia, nomeadamente nas grandes villae agrícolas.

Ainda não foram descobertas, ao que julgamos saber, adegas romanas com potes de barro na Bairrada, mas não será surpresa nenhuma se tal acontecer em breve, pois nessa época o vinho já estava democratizado e toda a gente o bebia, nem que fosse só em dias de festa!

A técnica de vinificação em potes de barro

Antes da vinificação é indispensável preparar os potes, revestindo as suas paredes internas com um material que as impermeabilize. No território que é hoje o Irão, já se fazia esta operação há cerca de seis mil anos, com resina de pistácio, pois caso não a fizessem o vinho infiltrava-se no barro poroso e, quando se esvaziava o pote, azedava, pois ficava em contacto com o ar.

Pode recorrer-se a vários materiais, mas entre nós usa-se, geralmente, o pez louro e/ou cera de abelha. Na nossa adega os potes foram pesgados com uma mistura de pez e cera, para que o vinho não ficasse com um sabor muito pronunciado a resina de pinheiro. Feita esta operação, os potes estão prontos a receber uvas, mas há cuidados a ter para que o vinho fique bom. O mais importante consiste na remoção do engaço dos cachos, para que o vinho não fique com sabor herbáceo e demasiado adstringente. Essa operação foi, até ao século XX, manual, recorrendo-se a um ripador, também chamado ciranda ou cirandão. Deitavam-se os cachos no tabuleiro do cirandão, cujo fundo é uma grade, e esfregavam-se as uvas com as mãos, de modo a remover os bagos e a esmagá-los. Os engaços ficavam no tabuleiro, enquanto os bagos esmagados passavam pela grade, sendo recolhidos em baldes. Após verter os bagos esmagados no pote, com o cuidado de deixar um espaço vazio de cerca de 40 cm, aguarda-se que as uvas entrem em fermentação, normalmente ao fim de 36 a 48 horas. Quando a fermentação desperta, as massas sólidas, formadas pelas películas e grainhas, vêm à superfície e formam a balsa ou manta. Durante a fermentação é preciso mergulhar a balsa, duas vezes ao dia, para que não azede, recorrendo a um rodo ou pé de galo, de madeira. Ao fim de uma semana termina a fermentação e o vinho está feito. Contudo, há ainda muitos detalhes a ter em conta. Ao fim de alguns dias, a balsa cai e vai para o fundo do pote. Começam, então, a surgir algumas grainhas à superfície, que têm de ser removidas com um coador, para que o vinho não ganhe flor e, mais tarde, azede. Essas grainhas são chochas, inviáveis e mais leves do que as outras, razão pela qual vêm à superfície. As restantes grainhas, no entanto, ficam no fundo do pote, juntamente com as películas, restos de polpa e borras das leveduras, formando a "mãe" do vinho, que vai servir de filtro e permitir que o vinho saia límpido pela torneira colocada no fundo do pote, passadas algumas semanas. Assim, no dia de São Martinho, o vinho está pronto para a primeira prova, depois de o deixar pingar para um alguidar de barro que se coloca por baixo da torneira. Esta operação é importante, não só para que o vinho clarifique, o que acontece ao fim de alguns minutos, e afine o aroma.

No caso de se querer engarrafar o vinho do pote, passa-se todo pela "mãe", para clarificar e trasfega-se para outra talha, onde acaba de clarificar. Esta trasfega faz-se, em regra, até janeiro ou fevereiro, para que a "mãe" não se deteriore e prejudique a qualidade do vinho. Depois de engarrafado... é só beber!

Uma tecnologia milenar, sem químicos ou aditivos, que homenageia o vinho ancestral, também conhecido por "vinho do barro", inventado, há cerca de oito mil anos na Transcaucásia... e recriado na Bairrada a partir de 2024.

Texto da autoria do Professor Virgílio Loureiro.

Um dos mais prolíficos académicos, investigadores, enólogos e comunicadores do vinho, Virgílio Loureiro protagonizou uma prestigiada carreira como docente do Instituto Superior de Agronomia no domínio da Microbiologia.

google-site-verification=y3in2N0RvGvrOL5dQyLCnYV_2x56pUpVkML7NdN2SK0