Adega Malápio
Adega Malápio

Uma aventura de vinho de talha na Bairrada

Romeu Martins, vitivinicultor artesanal da Bairrada

As minhas raízes estão em Barrô, Aguada de Baixo e Aguada de Cima, aldeias do norte da Bairrada. O meu pai era mecânico e a minha mãe costureira. Como tantos portugueses humildes viram-se forçados a emigrar e eu nasci, por isso, na África do Sul. Regressei à Bairrada com dois aninhos e passei a viver com o avô Aristides, mestre do barro e encarregado geral da famosa Cerâmica do Bicarenho, que me foi ensinando os segredos da sua arte e as fainas agrícolas, principalmente o cultivo das vinhas e o fabrico do vinho.

Dizem que eu tinha um espírito irrequieto e empreendedor, e talvez seja verdade pois interessava-me por imensas coisas e pela leitura, podendo considerar-me um leitor compulsivo. Tinha ânsia de saber e de fazer coisas. Aos vinte anos comprei um restaurante em Águeda, quando os bancos ofereciam dinheiro, e tive a primeira oportunidade para assumir riscos, nunca me passando pela cabeça falhar. Infelizmente, não correu bem, fruto de alguns erros que cometi e, principalmente, por a Câmara Municipal ter mandado fechar a rua do restaurante, para obras, que me fez perder muitos clientes. Tive de o vender e partir para outra.

Como tinha feito 800 horas de formação em cozinha e pastelaria, na Escola de Hotelaria de Coimbra, procurei algo onde pudesse mostrar o que sabia e conhecer mundo. Por isso, fiquei feliz quando ganhei uma posição de Chef nos cruzeiros da Princess Cruise Lines. Andei por lá vários anos, corri mundo, conheci muita gente, ganhei experiência e tornei-me fluente em inglês. Quando me fartei e as saudades da terra falaram mais alto, regressei à minha querida Bairrada e resolvi tirar um curso de Topografia na Universidade de Aveiro. Logo que o terminei estabeleci-me como topógrafo, por conta própria. Trabalhava bastante, mas ao fim de algum tempo percebi que, por mais que me esforçasse, não saía da cepa torta e decidi, de novo, mudar de rumo. A exemplo dos pais, resolvi emigrar para a Dinamarca, onde pretendia trabalhar três anos e ganhar dinheiro suficiente para regressar à terra e montar novo negócio. Em vez de três anos fiquei dez e foi na Dinamarca que montei o negócio, depois de arranjar um sócio. Como gostava de pastelaria, achei que montar uma casa de empadas e pastéis de nata seria boa ideia. Desta vez o negócio deu certo e os pastéis de nata começaram a fazer furor na terra dos vikings, que faziam fila à porta da loja à espera de vez. Como o negócio ia bem, resolvemos abrir uma segunda loja. Mas sempre que ia à terra o meu filho, perguntava-me sempre por que razão ia embora ao fim de poucos dias. Não era vida e tanto ele como a mulher, pediram-me para regressar. A pandemia precipitou os acontecimentos e, de repente, regresso à terra, com algum dinheiro no bolso, cheio de ilusões e determinado a orientar a vida da família. Ia começar a minha aventura do vinho de talha na Bairrada.
Pode parecer bizarro que, sendo eu especializado em pastelaria e topógrafo encartado, me decidisse a ser produtor de vinho de talha, mas tem a sua razão de ser. A ideia começou a ruminar na minha cabeça ainda na Dinamarca, quando decidi importar vinho de Portugal. Reparei, então, que não encontrava nenhum vinho palheto, parecido com o que o avô fazia e de que eu tanto gostava. Por outro lado, quando regressei o vinho de talha estava a renascer no Alentejo e quando o provei vieram-me as lágrimas aos olhos, pois tinha o sabor do vinho do avô Aristides. Foi o clique que me faltava para dar início ao novo negócio. Cheguei à conclusão que podia conciliar a arte do barro, que tanto me tinha marcado na infância, com o estilo de vinho que o avô fazia e não olhei mais para trás. Estava delineado o conceito, com a vantagem de poder prestar uma homenagem a quem me tinha criado. Empenhei-me, pois, em respeitar toda a tradição antiga, desde as vinhas de estilo medieval à adega de talhas do avô, feita com paredes de adobe. Com os 50 anos eminentes, cheio de experiência, sentia-me motivado para o negócio e a viver o período mais feliz da minha vida, na companhia do filho e da mulher. Arregacei as mangas e deitei mãos à obra.

As vinhas ao melhor estilo medieval

Para poder recriar o "tinto clarinho" que o meu avô Aristides fazia, conhecido por "palheto" e com muita fama nas redondezas, era preciso ter vinhas parecidas com as dele, as quais, por herança, ficaram para os tios. Por isso, a primeira medida que tomei foi encontrar uma vinha à moda antiga que pudesse cultivar. Vinhas disponíveis havia muitas, pois há cada vez mais gente a abandonar a viticultura na Bairrada, mas uma vinha parecida com a do avô não foi fácil e demorei quase um ano a encontra-la. Descobri-a em Barrô, terra de vinhos com grande fama, que, como o nome sugere, é zona de terras barrentas.

O senhor que tomou conta dela durante mais de 60 anos, disse-me que já era dos pais e dos avós, e que o primeiro proprietário, um advogado rico, mandou-a cavar profundamente à enxada, pelos Gafanhotos, os jornaleiros das Gafanhas, antes da plantação. Está virada para os campos de arroz do rio Cértima, a 500 m da pateira de Fermentelos, tem cerca de 1 ha e, como mandava a tradição da época, tem as mais variadas castas, brancas e tintas, todas misturadas. Mais de metade são brancas, onde sobressaem Maria Gomes, Bical, Cerceal e Rabo de Ovelha, e nas tintas reconhecem-se Tinta Pinheira, Castelão Nacional, Bastardo, Alfrocheiro, Trincadeira e algumas desconhecidas. As cepas impõem respeito, pois são quase centenárias, retorcidas, de tronco grosso, apoiadas a uma cana que serve de tutor. É, portanto, uma vinha mais parecida com as da Idade Média do que com as do século XXI, mas semelhante às do avô Aristides, pelo que estou convencido que irá dar um palheto parecido com o que ele fazia. Se dúvidas tivesse, deixei de as ter e decidi-me a recuperar a tradição vitícola bairradina de outros tempos com o objetivo de, não só recuperar os aromas e sabores dos vinhos antigos, que tantas recordações me trazem, mas também para aumentar a autoestima da gente da terra.

A adega das talhas

Quando decidi retomar a produção de vinho na família, ficou claro na minha cabeça que era essencial reconstruir a primeira adega onde o meu avô fez vinho e que, lamentavelmente, estava reduzida a escombros. Foi um trabalho duro, mas reconfortante, que me fez reviver os belos momentos que lá tinha passado, enquanto menino, com o meu avô Aristides. Era importante aproveitar as paredes originais, pois tanto os adobes como as paredes, tinham sido obra dele. Para lhes dar solidez construí uns contrafortes em tijolo refratário, que as vão manter em pé para as próximas gerações. A estrutura do telhado foi reforçada e coberta com a telha de cano ou mourisca usada no passado. O pavimento da adega foi todo feito em espinha com tijolo refratário, como sempre mandou a tradição bairradina, e as paredes foram caiadas de branco, segundo uma técnica milenar que pede meças às melhores tintas do século XXI.

Antes das próximas vindimas estou a contar revestir o teto com vimes, respeitando a tradição, embelezando o ambiente e dando valor a um material que acompanha a faina vitícola desde a mais remota antiguidade.

Com a adega preparada para receber talhas, só faltava arranjá-las, pois as do meu avô não eram suficientes, embora tivesse reservado um local especial na adega para as colocar. Segui, mais uma vez, os passos do meu avô, há mais de sessenta anos, quando se encantou com as que viu no Alentejo e resolveu levá-las para a Bairrada. As doze que comprei, vieram de Tolosa, têm mais de um século, já não faziam vinho há décadas e três delas eram espanholas, devendo chamar-se "pitarras" em vez de talhas. Quando chegaram à Aguada de Cima, foi preciso prepará-las para receber vinho e, mais uma vez, tive de recorrer à técnica que tinha visto fazer ao avô Aristides. Encerei-as com cera de abelha, depois de as colocar numa trempe de ferro de boca para baixo e de as aquecer bem com um fogareiro colocado junto à boca. Sem falsas modéstias, penso que ficaram perfeitas e prontas a levar vinho na colheita de 2024. Estava concluída a primeira fase do meu projeto, com a adega pronta e as talhas aptas a receber uvas. Ia começar a aventura de fazer vinho de talha!

A primeira vindima e o apoio técnico de um amigo

À medida que as uvas iam amadurecendo o nervosismo ia-se apoderando de mim, pois, como pasteleiro e topógrafo, não sabia bem como fazer o vinho de talha. Tinha uma ideia clara do tipo de vinho queria fazer — um "tinto clarinho", sem "químicas", como fazia o meu avô — mas não sabia bem como o conseguir. Após ter dado voltas à cabeça, lembrei-me de pedir ajuda a alguém que escrevia uns textos pedagógicos sobre vinhos no Facebook, que eu apreciava. O Professor Virgílio Loureiro. Passado uns dias recebo uma resposta positiva, pois a pessoa a quem me tinha dirigido achou piada ao projeto e principalmente ao meu entusiasmo. A partir daí comecei a receber lições de vinificação pelo telefone e a acompanhar o grau de maturação das uvas, segundo as boas regras da Enologia. Foi um mundo novo que comecei a descobrir e me deu muita confiança. E a quem devo muitos valiosos conselhos e até raspanetes.

Quando as uvas estavam com o grau pretendido foram colhidas, tendo reunido um grupo de amigos para fazer a vindima toda num dia. Quando as uvas chegaram à adega foram esmagadas e removidos os engaços à mão, para evitar que o vinho ficasse muito adstringente e com sabor herbáceo. Depois de verter as uvas esmagadas em duas talhas, foram inoculadas com um pé-de-cuba, isto é, um fermento natural preparado dias antes. Não foi necessário usar sulfuroso, pois as uvas estavam imaculadamente sãs e com o pé-de-cuba a fermentação espontânea começaria rapidamente. Tudo correu pelo melhor e quando a fermentação terminou estava feliz, pois o vinho estava "clarinho" e cheirava muito bem. Quando vieram os resultados da análise tornei a ficar contente, pois os vinhos das duas talhas respiravam saúde. A partir de então só era preciso que o frio do inverno fizesse o seu trabalho, ou seja, estabilizasse e clarificasse, naturalmente, o vinho. O meu mentor recomendou-me que o vinho não podia apanhar ar, pois é o seu pior inimigo, e sugeriu-me que colocasse um prato a flutuar na superfície do vinho cheio de solução sulfurosa. Deste modo, o vinho ficava totalmente protegido do contacto com o oxigénio e não absorvia sulfitos, podendo considerar-se um vinho sem "químicas". Ficou, entretanto, aprazado o seu engarrafamento para a Páscoa, de modo a poder servir de companhia do leitão assado à moda da Bairrada.

Romeu Martins

O nosso vinho

  • O vinho Malápio nasce da tradição familiar da vinificação em talhas de barro na região da Bairrada. Com vinhas muito antigas, o nosso objectivo é voltar a criar um vinho natural, de mínima intervenção, que resgate os métodos de produção do meu avô.
  • Oferecemos um vinho vinificado em talhas centenárias revestidas apenas com cera de abelha/resina de pinheiro proveniente de vinhas velhíssimas de castas tradicionais da Bairrada.
    O vinho Malápio segue as tradições  de Vinho de Talha/Pote sujeito a curtimenta mais ou menos prolongada.
  • Na vinha não usamos herbicidas.
  • Visitas à Adega/Vinha, serviço de almoço ou jantar incluído com o célebre Leitão à Bairrada.
  • Visitas à vinha, e conhecer os métodos de gestão de uma vinha medieval, com vista para os arrozais do Cértima.
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